sábado, 31 de março de 2018

AS TRÊS QUEDAS DE PEQUENA


                     Conto que compõe o Livro "Valdrada"                                                                                                                 organizado por                                                                                                                                                      Pablo Morenno.                                       

            Primavera escarlate de 1894 na paisagem passo fundense.
         Reflexo de um Rio Grande que sorvia o sangue de seus filhos. Uma guerra fraticida e insana, fazia tombar federalistas e republicanos. O método era cruento. Fúria daqueles que perderam o discernimento, não deixando prisioneiros e poupando artilharia, na degola encontravam sua sina!
             Passo Fundo era confesso republicano.  Neutralidade naquele evento não era condição, tinha-se que ter lado, até mesmo por proteção.
             Numa migração inconsciente, a população crescia.    Eram soldados e ex-combatentes, aventureiros, mercenários, comerciantes e mesmo gente fugindo de encarniçados combates a trilhar estes caminhos abertos a patas de cavalos.
           Neste contexto, aportaram à Vila, vindos de Nonoai, trilhando o caminho do Valinhos, o Ten. Marciano Angelino - um degolador de ofício  - com a esposa -  uma franzina mestiça -  Maria Meireles Trindade, o filho adolescente e a matriarca caingangue Marcelina Coema.    Esse núcleo familiar buscou abrigo num acampamento junto ao arroio Raquel, lá pras bandas da Vila Carmem.
         Por motivos que apenas suspeitamos, o esposo de Maria Pequena, continuara seu trabalho e fora "descoberto".  Um pequeno grupo de não mais que meia dúzia de cavalarianos maragatos na essência, embrenhou-se na mata e, por caminhos tortuosos, marchou rumo ao acampamento para um acerto de contas. O tenente, avisado que era alvo de tais compatriotas, desarvoradamente partiu com o filho rumo ao Valinhos, fazendo trajeto inverso ao que trilhara na chegada. 
           Naquela tarde, o vento Minuano assoviava por entre as frestas das barracas ... o sol arrefeceu, os cuscos uivavam em descompasso, os gatos ficaram agitados e os cavalos indóceis. No céu, revoada de andorinhas e quero-queros em alerta. Nuvens cinzas, num repente, tomaram lugar, coriscos ao longe pareciam querer dizer algo. Os gaúchos, desde as coxilhas, tentavam interpretar a natureza. Um esforço de centauros.
             Maria Pequena, nos afazeres domésticos junto de outras mulheres, lavava roupas no arroio. À época um meio de vida, pois ao final da tarde as entregavam engomadas aos seus respectivos donos.
          Pequena parecia ter perdido a força de bater roupa na pedra. Seu olhar foi distanciando-se da cena e ela mal ouvia o burburinho a sua volta. Virou-se. Vislumbrou, frente ao sol, silhuetas de cavaleiros em apressada carreira. Aos poucos ouviu o trote, cada vez mais próximo. Um pouco mais e avistava os lenços vermelhos agitando-se contra o vento.
             Recobrando a consciência, percebeu as outras mulheres correndo e gritando:
             - Busque abrigo, Pequena! Se esconda!  
             E Maria Pequena permaneceu quieta, com um quase sorriso no rosto!      
             Dois maragatos apearam próximos e a interpelaram:
             - Sim, Maria Pequena sou eu,disse.
             - Temos uma adaga bem afiada e uns desaforos para teu marido e teu filho. Onde andam os viventes?
           Calou-se. O silêncio e altivez daquela mestiça provocavam mais ira nos carrascos. A primeira estocada certeira. Segundos como horas. Sem a confissão esperada, continuou a sangria da adaga. As pessoas, escondidas, choravam e rezavam pela alma de Pequena. Primeira queda!
              Mantido o mesmo silêncio. Mais golpes. Segunda queda.
              Arfando, de joelhos e com sangue escorrendo pelo corpo, o inquisidor não teve piedade. Puxando o cabelo de Maria, expôs sua garganta para o corte do fino fio da navalha. Terceira queda!
              A água encarnada do arroio viu os algozes sumindo na mata.
              Estranharam, os escondidos, o sol surgir de repente. Correram para Maria. Talvez ainda sobrevivesse. Apesar do rosto luminoso, era demasiado tarde.
             Tomando-a nos braços, Marcelina chorava lágrimas de sangue, que é toda lágrima de mãe que perde filho ou filha!
             Reuniram-se os populares para o funeral. Enterraram-na próxima ao local em que se dera tal tragédia, na outra margem do arroio. O túmulo fora pintado de azul com uma pequena cruz a indicar. Nascia assim o "Cemitério da Cruzinha".
            Naquela época e em décadas posteriores, a mortalidade infantil era muito alta. As famílias pobres começaram a enterrar seus "anjinhos" junto ao túmulo de Maria, que morreu sem revelar o paradeiro, salvando assim o próprio filho...tornada na crença popular como a Santa Protetora das Crianças.
            Conta-se que, nas décadas seguintes, diariamente o esquife de Pequena fora velado e flores abundantes perfumavam o Campo Santo. O povo dizia seu "obrigado" à santa dos humildes.
            A voz da oficialidade insurgiu-se:
            - Como assim, temos outra Maria? 
          Marcha infame e infeliz se armou na desesperança intencional de arrefecerem o culto desta Santa Mestiça, desta Santa Marginal. Removeram a ossada, deram sumiço nos restos mortais, o cemitério virou lavoura ... tentaram embotar sua memória!
           Mas o sangue de Maria Pequena  tem poder e nunca secará. As águas do arroio viram chuva e caem sobre a cidade, sempre que essa precisar.
           Pequena se reinventa. Surge na lembrança de Gumercindo, Paulo, Miguel, Serafim, Leandro, Gisele, Hugo, Carlos, Ney, Júlio, Telmo, Vivi, Vanessa, Tânia e Ernesto. Se fez livro e tema de colóquios. Renasceu na lembrança de devotos.
           Dizem que é vista em corredores de escolas ( a Maria Degolada) e em frente à catedral ( vestida de branco e a volitar), onde foi morar com a outra Maria! 
           Aos céticos devo dizer que ela não faz milagres a olhos vistos, isto porque os faz de alma!

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