Vão-se os anos na distante Passo Fundo, meados do século XX. Dentro
desse período aconteceu a mais famigerada guerra, onde o ser humano
demonstrou fúria irracional e desprezo nauseabundo para com o outro!
Naquele tempo, em Passo Fundo prosperou um comércio transgressor, o
contrabando de pneus, repassados aos argentinos com lucros exorbitantes,
que ainda os revendiam à Alemanha, proibido ao Brasil pelos acordos
internacionais. O negócio rendeu fortunas rápidas e a consolidação de
riquezas já hereditárias. Tudo à margem da lei. O dinheiro farfalhava
nas algibeiras. Visionários aportavam na capital do planalto
rio-grandense, pois, dinheiro chama dinheiro!
Naquele contexto floresceu a Rua XV de novembro, mais precisamente,
entre as Ruas Independência e General Osório, no centro, próxima da
Estação Ferroviária e Rodoviária, na época. Com hotéis, restaurantes,
casas de comércio, Igrejas e cemitério, tudo a um passo de qualquer
necessidade!
Rua XV, quantas histórias já caíram no esquecimento e quantas foram reinventadas? Perdemo-nos neste leque de possibilidades.
Por falar em leque ... ninguém tinha tanta elegância para manuseá-lo em
movimentos magistrais, que as mãos mais cobiçadas a um ósculo de
refinado cavalheirismo, Madame ISALDINA. Admirada pelos mais altos
escalões do poder e odiada e invejada pelas anêmicas cônjuges dos
mesmos.
Exímia no trato político local, nacional e internacional, pois, em seu
estabelecimento de Lazer, Diversão e Cultura, palavras estas em
diferentes interpretações, recepcionou o mandatário maior da nação,
ninguém menos que Getúlio Dorneles Vargas. Também corria à boca miúda
que teria proporcionado lancinantes momentos de rara envergadura
literária a Perón, suposição é claro de "bocas de matildes"!
Aqui nada se afirma, pois, o Cassino da Maroca (como era carinhosamente
chamada) ou o Palácio da Maroca era envolto em névoas de imoralidade,
jogatina, bebedeiras, libertinagem, pecados e hematomas indizíveis,
isso, segundo relatos de algozes que viam ali o que teria sido Sodoma e
Gomorra, incrustados num Passo Fundo que teima em não ser esquecido.
Aos menos afortunados, havia na XV outros palacetes assobradados, pensões e mafuás.
Ao Cassino nada era comparável! Orquestra, corpo de baile, conjunto
musical, sala de jogos (carteado e roleta), gastronomia e lindas
ninfetas (entre 21 e 25 anos), a encantar os olhos e a aguçar o instinto
da corte local e viajantes afortunados do comércio de pneus com a
Argentina.
Fato é que os estabelecimentos da Rua XV movimentavam a economia local,
pois, precisavam de garçons, cozinheiros/as, faxineiros/as, lavadeiras,
cabeleireira(o)s, manicures, costureiras, modistas, músicos, lojas de
víveres, de tecido e taxistas (entre outros).
Seguindo esse vetor, a Arte em Passo Fundo estava em ebulição, cito a
Companhia Delorges Caminha, de Teatro; nesse contexto foi que o CIRCO
chegou em grande estilo, de trem, previamente anunciado. Parcela da
população dava as boas vindas e em recíproca largos sorrisos e misancene
dos artistas.
O Gran Circo Sur Americano chegou com sotaque espanhol. De linhagem
circense, o empreendimento cultural vinha da Província de São José
(Uruguai) e, segundo conversas colaterais, viera referendado por Madame!
O Gran Circo Sur Americano estabeleceu-se próximo ao Quartel do 20,
região central, com dois mastros (30m por 60m); possuía cadeiras
numeradas e arquibancadas, com o codinome "Gigante de Lona"! Em local
apropriado, o picadeiro onde aconteceriam "Números Virtuosos" de tecido,
corda indiana, lira, contorcionismo, acrobacias e trapézio, rola-rola,
malabares, pirofagia e magia clássica. E também Reprises cômicas e
musicais com a trupe de palhaços. Tudo isso sob a batuta do Magnata do
Riso, "O Palhaço Gira-Gira"!
Ainda, no picadeiro o público era agraciado com cenas que a retina dos
infantes jamais esqueceriam: Elefantes, Macacos, Cães e Cavalos
adestrados, cuja estrela maior era o puro sangue que atendia pela
alcunha de Conde!
Concomitante ao picadeiro era erguido, suntuoso, o palco italiano;
novidade, onde se brindava ao público peças de teatro, uma inovação
prodigiosa. Era o Circo se adaptando aos novos tempos, em que as casas
de cinema dividiam o público e também o surgimento eloquente da
televisão. Nascia o Circo Teatro ou, conforme preferência semântica,
Teatro de Lona, com números mais curtos e atrativos.
No entanto, caro leitor, ainda na função da armação dessa fábrica de
sonhos, correu boato que Gira-gira tornara-se vítima dum surto de febre
tifóide, que assustava a região. Confirmado o diagnóstico e gravemente
doente, em perigo de morte eminente, teve licença médica humanitária,
para proporcionar a sua esposa, o sonho dum casamento em cerimônia
religiosa. Assim foi feito, na Igreja Nossa Senhora da Conceição, onde
as áias foram as próprias filhas. Um escândalo, não fossem os enfeites
na Matriz terem sido presente da comadre Isaldina (como era saudada na
família circense). Enfim, havia vexame maior!
Gira-Gira foi tratado e curado no HSVP e o espetáculo teve
prosseguimento, ou quase. Enfim, houve atraso na estreia, de vários
dias. É que o secretário do circo, homem das deliberações burocráticas,
estava no xilindró, acusado de bebedeira e arruaça na rua XV. Gira-Gira
por pouco não teve um colapso com a aviltante notícia.
Conta-se que o homem dos trâmites, por ter regalias junto à comadre,
chegou garboso no Cassino, escolhendo a dedo, Tetéia, uma francesinha de
21 anos e catedrática na arte da sedução. De corpo esguio, feições de
boneca e um vestido rendado, sob vermelho cádmio, acinturado de leve
godê que se estendia a um palmo antes dos joelhos, deixando entrever,
sem nada mostrar. O encontro foi regado a champanhe pra moça e whisky
pra matar a sede dum batalhão. Lá pelas duas da madrugada, Tetéia levou o
incauto à mesa de jogo. Contam que, na última rodada, quando o croupier
anunciou o vencedor e curvou-se para recolher as fichas e o dinheiro
sobre a mesa, deu-se o fiasco de proporção antológica. Antony, nome
artístico, duro de trago saltou sobre a mesa tentando resgatar ao menos
parte da aposta, chorando desesperadamente e lutando com os seguranças,
gritava como um louco:
- Este não, este não, é da prefeitura.
Sem o pagamento das taxas, sem Alvará.
Sem Alvará. Sem Circo!
Gira-Gira aprumou o corpo, ainda convalescendo, vestiu sua melhor
fatiota e foi até o Cassino. Em encontro reservado com a comadre Maroca,
nem foi preciso pedir, de pronto a formosa dama proveu 100 mil
cruzeiros ao amigo, uma pequena fortuna à época. E foi assim que o Gran
Circo estreou em Passo Fundo e foi sucesso estrondoso. Mais um segredo,
Maroca teria patrocinado, não fosse a devolução do empréstimo, nota em
cima de nota. Gira-Gira era homem de princípios.
Conta-se também que, vinte dias depois partiu o circo, de trem, rumo a
Cruz Alta. À bagagem de Antony somava-se a de Sebastião, (vulgo Tetéia,
lembram?), teriam vivido um tórrido amor. Eu não paro de me surpreender
com aquele Cassino.
O mágico, "El Condor", amasiou-se com a estonteante nigeriana
Magdalenna e seus descendentes são os criadores, pelo que sei, do Circo
Giratório da Chechênia.
E tem o caso menos glamouroso, dum "peludo" de apelido Chico Onça que,
sem dinheiro para ostentar, iniciou romance com rapariga dum mafuá, mais
a esquerda, na Rua XV, loiraça de nome Marga, que lhe rendeu alguns
dias felizes e uma vida de incomodação.
E ainda tem o caso mais comentado até hoje pelos mais velhos.
Heráclito, o galã das peças teatrais, moço de fina estampa, não se dava
ao desfrute do meretrício. Era visto diariamente entrar na Igreja,
circunspecto. Quando o Circo partiu, a Madre encontrou bilhete bizarro. A
noviça Maria Socorro dos Anjos fugiu com o Circo e foi viver de amor e
arte!
Foi-se o Circo, a guerra acabando e a Rua XV começou seu martírio de
intrigas jornalísticas, moralismo religioso e senhoras despeitadas.
Hoje, só mais uma história!