quinta-feira, 29 de agosto de 2019

GRAN CIRCO SUR AMERICANO

Vão-se os anos na distante Passo Fundo, meados do século XX. Dentro desse período aconteceu a mais famigerada guerra, onde o ser humano demonstrou fúria irracional e desprezo nauseabundo para com o outro!
Naquele tempo, em Passo Fundo prosperou um comércio transgressor, o contrabando de pneus, repassados aos argentinos com lucros exorbitantes, que ainda os revendiam à Alemanha, proibido ao Brasil pelos acordos internacionais. O negócio rendeu fortunas rápidas e a consolidação de riquezas já hereditárias. Tudo à margem da lei. O dinheiro farfalhava nas algibeiras. Visionários aportavam na capital do planalto rio-grandense, pois, dinheiro chama dinheiro!
Naquele contexto floresceu a Rua XV de novembro, mais precisamente, entre as Ruas Independência e General Osório, no centro, próxima da Estação Ferroviária e Rodoviária, na época. Com hotéis, restaurantes, casas de comércio, Igrejas e cemitério, tudo a um passo de qualquer necessidade!
Rua XV, quantas histórias já caíram no esquecimento e quantas foram reinventadas? Perdemo-nos neste leque de possibilidades.
Por falar em leque ... ninguém tinha tanta elegância para manuseá-lo em movimentos magistrais, que as mãos mais cobiçadas a um ósculo de refinado cavalheirismo, Madame ISALDINA. Admirada pelos mais altos escalões do poder e odiada e invejada pelas anêmicas cônjuges dos mesmos.
Exímia no trato político local, nacional e internacional, pois, em seu estabelecimento de Lazer, Diversão e Cultura, palavras estas em diferentes interpretações, recepcionou o mandatário maior da nação, ninguém menos que Getúlio Dorneles Vargas. Também corria à boca miúda que teria proporcionado lancinantes momentos de rara envergadura literária a Perón, suposição é claro de "bocas de matildes"!
Aqui nada se afirma, pois, o Cassino da Maroca (como era carinhosamente chamada) ou o Palácio da Maroca era envolto em névoas de imoralidade, jogatina, bebedeiras, libertinagem, pecados e hematomas indizíveis, isso, segundo relatos de algozes que viam ali o que teria sido Sodoma e Gomorra, incrustados num Passo Fundo que teima em não ser esquecido.
Aos menos afortunados, havia na XV outros palacetes assobradados, pensões e mafuás.
Ao Cassino nada era comparável! Orquestra, corpo de baile, conjunto musical, sala de jogos (carteado e roleta), gastronomia e lindas ninfetas (entre 21 e 25 anos), a encantar os olhos e a aguçar o instinto da corte local e viajantes afortunados do comércio de pneus com a Argentina.
Fato é que os estabelecimentos da Rua XV movimentavam a economia local, pois, precisavam de garçons, cozinheiros/as, faxineiros/as, lavadeiras, cabeleireira(o)s, manicures, costureiras, modistas, músicos, lojas de víveres, de tecido e taxistas (entre outros).
Seguindo esse vetor, a Arte em Passo Fundo estava em ebulição, cito a Companhia Delorges Caminha, de Teatro; nesse contexto foi que o CIRCO chegou em grande estilo, de trem, previamente anunciado. Parcela da população dava as boas vindas e em recíproca largos sorrisos e misancene dos artistas.
O Gran Circo Sur Americano chegou com sotaque espanhol. De linhagem circense, o empreendimento cultural vinha da Província de São José (Uruguai) e, segundo conversas colaterais, viera referendado por Madame!
O Gran Circo Sur Americano estabeleceu-se próximo ao Quartel do 20, região central, com dois mastros (30m por 60m); possuía cadeiras numeradas e arquibancadas, com o codinome "Gigante de Lona"! Em local apropriado, o picadeiro onde aconteceriam "Números Virtuosos" de tecido, corda indiana, lira, contorcionismo, acrobacias e trapézio, rola-rola, malabares, pirofagia e magia clássica. E também Reprises cômicas e musicais com a trupe de palhaços. Tudo isso sob a batuta do Magnata do Riso, "O Palhaço Gira-Gira"!
Ainda, no picadeiro o público era agraciado com cenas que a retina dos infantes jamais esqueceriam: Elefantes, Macacos, Cães e Cavalos adestrados, cuja estrela maior era o puro sangue que atendia pela alcunha de Conde!      
Concomitante ao picadeiro era erguido, suntuoso, o palco italiano; novidade, onde se brindava ao público peças de teatro, uma inovação prodigiosa. Era o Circo se adaptando aos novos tempos, em que as casas de cinema dividiam o público e também o surgimento eloquente da televisão. Nascia o Circo Teatro ou, conforme preferência semântica, Teatro de Lona, com números mais curtos e atrativos.
No entanto, caro leitor, ainda na função da armação dessa fábrica de sonhos, correu boato que Gira-gira tornara-se vítima dum surto de febre tifóide, que assustava a região. Confirmado o diagnóstico e gravemente doente, em perigo de morte eminente, teve licença médica humanitária, para proporcionar a sua esposa, o sonho dum casamento em cerimônia religiosa. Assim foi feito, na Igreja Nossa Senhora da Conceição, onde as áias foram as próprias filhas. Um escândalo, não fossem os enfeites na Matriz terem sido presente da comadre Isaldina (como era saudada na família circense). Enfim, havia vexame maior!
Gira-Gira foi tratado e curado no HSVP e o espetáculo teve prosseguimento, ou quase. Enfim, houve atraso na estreia, de vários dias. É que o secretário do circo, homem das deliberações burocráticas, estava no xilindró, acusado de bebedeira e arruaça na rua XV. Gira-Gira por pouco não teve um colapso com a aviltante notícia.
Conta-se que o homem dos trâmites, por ter regalias junto à comadre, chegou garboso no Cassino, escolhendo a dedo, Tetéia, uma francesinha de 21 anos e catedrática na arte da sedução. De corpo esguio, feições de boneca e um vestido rendado, sob vermelho cádmio, acinturado de leve godê que se estendia a um palmo antes dos joelhos, deixando entrever, sem nada mostrar. O encontro foi regado a champanhe pra moça e whisky pra matar a sede dum batalhão. Lá pelas duas da madrugada, Tetéia levou o incauto à mesa de jogo. Contam que, na última rodada, quando o croupier anunciou o vencedor e curvou-se para recolher as fichas e  o dinheiro sobre a mesa, deu-se o fiasco de proporção antológica. Antony, nome artístico, duro de trago saltou sobre a mesa tentando resgatar ao menos parte da aposta, chorando desesperadamente e lutando com os seguranças, gritava como um louco:
- Este não, este não, é da prefeitura.
Sem o pagamento das taxas, sem Alvará.
Sem Alvará. Sem Circo!
Gira-Gira aprumou o corpo, ainda convalescendo, vestiu sua melhor fatiota e foi até o Cassino. Em encontro reservado com a comadre Maroca, nem foi preciso pedir, de pronto a formosa dama proveu 100 mil cruzeiros ao amigo, uma pequena fortuna à época. E foi assim que o Gran Circo estreou em Passo Fundo e foi sucesso estrondoso. Mais um segredo, Maroca teria patrocinado, não fosse a devolução do empréstimo, nota em cima de nota. Gira-Gira era homem de princípios.
Conta-se também que, vinte dias depois partiu o circo, de trem, rumo a Cruz Alta. À bagagem de Antony somava-se a de Sebastião, (vulgo Tetéia, lembram?), teriam vivido um tórrido amor. Eu não paro de me surpreender com aquele Cassino.
O mágico, "El Condor", amasiou-se com a estonteante nigeriana Magdalenna e seus descendentes são os criadores, pelo que sei, do Circo Giratório da Chechênia.
E tem o caso menos glamouroso, dum "peludo" de apelido Chico Onça que, sem dinheiro para ostentar, iniciou romance com rapariga dum mafuá, mais a esquerda, na Rua XV, loiraça de nome Marga, que lhe rendeu alguns dias felizes e uma vida de incomodação.
E ainda tem o caso mais comentado até hoje pelos mais velhos. Heráclito, o galã das peças teatrais, moço de fina estampa, não se dava ao desfrute do meretrício. Era visto diariamente entrar na Igreja, circunspecto. Quando o Circo partiu, a Madre encontrou bilhete bizarro. A noviça Maria Socorro dos Anjos fugiu com o Circo e foi viver de amor e arte!
Foi-se o Circo, a guerra acabando e a Rua XV começou seu martírio de intrigas jornalísticas, moralismo religioso e senhoras despeitadas.
Hoje, só mais uma história!

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