terça-feira, 10 de janeiro de 2012

FACES D'UMA TRAGÉDIA



Coletânea de Contos projetopassofundo.com.br



 Noite sombria ... o vento minuano rugia bravamente contra os eucaliptos que curvavam-se ante profética expressão de poder. Trovejava ao longe e riscavam o céu relâmpagos insaciados do último temporal. A previsão de chuva calma e ventos amenos, fora dissipada pela fúria de quem é dona de si mesma - a Tempestade!                                                                               
       As ruas expressavam bem o conceito de vazio demográfico. Vivas almas que a habitavam naquele momento eram de alguns desgraçados, tais como, mendigos, bêbados, loucos, prostitutas, ratos e vira-latas, subprodutos de sociedades esquizofrênicas, segundo palavras de psicólogos proeminentes.
       Um grito apavorante e medonho pulula o ar atmosférico, prenunciando a dor dilacerante de entranhas feridas...
      O telefone trine freneticamente na recepção do pequeno hospital municipal. A gorda funcionária, de sobressalto lança  um olhar odioso ao vil aparelho.
      Seria apenas um pedido de informação ou o aviso de uma morte prematura? Pois sim, todos eram jovens para morrerem,  ou morriam antes da hora, do tempo. Estas eram as queixas mais frequentes pelos subtraídos de fúnebres ente-queridos. Ela já estava farta de tais locuções tanatológicas.
   O telefone parecia atormentado, ela precisava atendê-lo, no entanto deslocava-se com dificuldade, pois infelizmente quebrara o  pé três semanas atrás, quando resvalara na rampa de acesso ao hospital. Havia garoado minutos antes e o imprevisto acontecera,  logo com ela que jazia trinta anos naquele estabelecimento de prevenção e quiçá, cura de enfermidades. Por sorte o médico de plantão  lhe atendera rapidamente, mas a advertira, dizendo-lhe que poderia ter sido pior, ainda mais tendo ela 1m50cm e pesando 169kg.
     Esboçava ela um sorriso amargo frente a inevitável conclusão...voltar ao regime alimentar! Ela temia não ajustar-se a vida social e ao  trabalho, sem a batida de abacate, às 7h no desjejum e o leitinho com nescau, às 16hs no lanche, acompanhado de uma fatia de torta fria recheada com carne de porco. Mas confortava-se com a máxima fixada por ela mesma no mural da sala dos médicos: "A vida é sacrifício!" (anônimo).
      Era 1h11min (horário de verão), fazia-se necessário vencer as dificuldades e encaminhar-se até o enfadonho aparelho. 
      Mesmo porque era uma obrigação trabalhista e moral, pois ocupava ela os cargos de recepcionista e telefonista do referido estabelecimento, conforme contrato firmado nos limites da lei e ajustes políticos.
      Era o primeiro telefonema daquele dia 13...sim...13, sexta-feira, mês de agosto. Era indisfarçável a apreensão geral dos funcionários escalados para aquele plantão.
    A avantajada funcionária finalmente alcançara o aparelho. Do outro lado uma voz trêmula, angustiada, respiração ofegante, talvez de um asmático severo ou de um tabagista pesado...diagnóstico logo esquecido ante a urgência do caso:
        - Dois homens...uma mulher...um tiro...caiu o outro...talvez vivo...ou não...
        - Motivo? - gritou ela cônscia de sua tarefa social.
        - Amor sorrateiro, as escondidas...infidelidade!
        - Tragam rápido...
        - Não há como!
        - Endereço, ligeiro - percebera a má sorte do moribundo.
      - Vila Draga...rua do Percalço...nº 666...fundos....depressa...deprrrr....- fora os últimos sussurros ouvidos pela prestimosa recepcionista e salutar telefonista.
        Acostumada a estas ocorrências, dirigiu-se a quem de direito para serem tomadas as devidas providências.
      O enfermeiro plantonista deparou-se com situação "sui generis", pois não havia motorista para a  ambulância na casa.
      Seu Firmino, o motorista que gostava dos plantões, submetera-se a uma cirurgia de urgência, apendicite aguda. No entanto o infeliz adquirira  uma infecção hospitalar, estava à beira da morte. Logo seu Firmino, motorista calejado e de confiança. Sim, ele sempre buscava lanches  para os mais esfomeados, claro que de ambulância, pois a prefeitura no afã de reduzir os gastos...fez cortes na própria carne...dos funcionários.
       Fazia-se necessário contatar o administrador do estabelecimento para que ele liberasse outro funcionário para aquela função, dando-lhe folga é claro, noutro dia. Finalmente o motorista do trator de esteira da Sec. de Obras apresentou-se ao enfermeiro, pondo-se à disposição. Fora a última alternativa, arranjo feito entre o administrador, o Secretário de Obas e o Secretário de Saúde...velhos correligionários.
      Dadas as informações e orientações necessárias ao debutante, este dirigiu-se até a ambulância. Com certa frieza no olhar percebeu de chofre o pneu vazio. O enfermeiro autorizou o vigia a ajudá-lo na troca, feita em minutos.
      Ao acionar a ignição veio a indignação...não havia bateria(sem carga)...alguém esquecera os faróis ligados. Culpado? Seu Firmino. Era a única explicação viável.
      No relógio os ponteiros acusavam 3hs33min, finalmente a ambulância estava em condições de buscar o incauto. O funcionário do raio X, interessado, acompanhava todos os negócios do hospital, advertira o tratorista:
      - Seu Gregório...vá com calma pois esta ambulância ainda não passou por uma revisão mecânica...nem elétrica. Foi arrebatada em leilão judicial. É nossa única...vá com calma...
   Partiu Gregório rumo ao acontecido. Chegando lá, deparou-se com um homem de 80 anos ,agonizante...ensanguentado. A impressão primeira era de um ferimento no abdômen. "Abdômen", nome este que ostenta certa pompa.
       Providenciou a maca, porém recusou-se a tocar no moribundo. Lembrara-se oportunamente dum documentário da TV. O sangue transmite AIDS. Ele tinha netos pequenos, não precisava arriscar-se e o enfermeiro não lhe dera luvas.
        Enquanto os populares punham o velho na maca e o amarravam como convém, seu Gregório pôs-se de prosa com os curiosos, para arrancar detalhes e então transmiti-los à enfermagem e aos médicos.
       Ao que parece e era o rumor geral ao menos, que o esposo cuja idade era alardeada pelos populares, de 19 anos, fora dispensado do trabalho uma hora antes, em troca de gentilezas, pois dias antes levara o cão poodle da madame para o pet.
       Ao que consta, comprara um bouquet de rosas vermelhas e um espumante, para fazer surpresa a jovem esposa que completava 18 anos. Chegando em casa fora surpreendido, esbofeteado, achincalhado e humilhado com tal visão. Na cama, sua flor de Vitória Régia - assim ele carinhosamente a chamava - debulhava-se em sensações libidinosas e rompantes carnais numa interação orgásmica com um esquálido verme, traindo assim sua afeição e ternura.
        Tomado pelo ódio fatídico, não ponderou. Esgueirou-se até o criado mudo, perplexo e estupefato e num grito lancinante, empunhou seu "38" e desferira tiros que julgara fatal, no mísero autor de seus dias.
        Sim...após ferir o próprio pai que o traía carnalmente, fugira em desarticulado pavor. A vida lhe pregara uma peça. Arruinado estavam os seus dias.
         Seu Gregório, após tais depoimentos, partiu rumo ao hospital. O agonizante repetia ensurdecedoramente:
         - Quero filho! Quero filho! - era sem dúvida um depravado o candidato a defunto.
       Gregório logo percebeu que a ambulância era desprovida de sirene. Ele não havia testado na vinda. Tentou buzinar desesperadamente, esta também não funcionava. Os motoristas da pista da direita eram umas lesmas. A pista da esquerda, logo naquele dia, parecia combinado, ninguém passava dos 80km/h. Ele costurava alucinadamente. Pelo espelho  notou que o incauto estava a estrebuchar, precisava chegar a tempo. Apavorava-se só em pensar que aquela alma poderia culpá-lo e amedrontá-lo para o resto de sua vida.
       Pisou firme no acelerador - meu Deus, a sinaleira mudara para vermelho, daria tempo? Não daria? É um fusca...pronto...novamente populares...que acidente feio...
         Dizem testemunhas oculares e segundo laudos periciais e processo em andamento na 13º vara de justiça, que o senhor alvejado por arma de fogo, mesmo amarrado, quebrara o pescoço. Isto ocasionara-lhe a morte e não o tal ferimento de morte do início desta história.
        O motorista tratorista, o infeliz Gregório, fora lançado 13m à frente do local do acidente, tal a violência do impacto. Curiosos sempre existem no caso de acidentes. Se há mortes eles triplicam. Quando a polícia chega no local, pelo fato de nunca estarem no local, as testemunhas reduzem-se a zero, ninguém quer falar, a mudez adquire caráter patológico. Ninguém viu, ninguém sabe, a maioria chegou depois, como indica a lógica visto que é acidente.
     Levaram seu Gregório para o hospital aludido no início desta trama, pois o motorista do fusca escapara ileso. Afirmava ele, categoricamente, estar o sinal verde para sí e de não ter ouvido sequer um assovio da ambulância.  Não se abalava, mesmo frente a testemunhas auditivas, de que a ambulância vinha com as sirenes abertas, muitos decibéis acima do permitido por lei.
     Chegou por fim o pobre Gregório no hospital, onde não foi reconhecido por não fazer parte do quadro funcional  e foi tratado com a habitual cerimônia de sempre:
       - Corre...pega a maca...para a sala de emergência...chame o médico...ele vai parar...
      A secundarista que cursava a Escola Técnica em Enfermagem, estava em estágio e que vira o médico no pátio minutos antes saboreando uma bergamota, pois o plantão estava calmo, chamou-o desesperadamente. Correu o médico, correu o enfermeiro, correu a secundarista, todos correram neste momento crucial, adrenalina a mil...
       - Rápido - disse o médico.
       - Tragam o carro de parada - orientou o enfermeiro.
      Em segundos os eletrodos estavam fixados, como se vê, a massagem fora descartada. O médico deu um grito apavorante e o coração da estagiária descompensou de súbito, tamanho o susto:
       - Desencoste da cama pelo amor de Deus, queres tu levar o choque?
       - Desfibrilando - o primeiro não surtiu efeito.
       - Desfibrilando - o segundo não teve sucesso.
       - Desfibrilando - o terceiro não provocou o esperado.
       - Adrenalina intracardíaca no quarto espaço intercostal.
       - Adrenalina? Mas nós não temos nem seringa -advertiu o enfermeiro ensimesmado.
      Uma hora depois, na sala da direção, o funcionário responsável pelas licitações públicas para as compras de medicamentos e liberação destes para a farmácia tentava explicar-se:
     - As propostas estão em estudo, haverá lisura na concorrência. O atraso está no recesso parlamentar, os feriados sempre atrapalham e ainda temos outras emergências no município. Mas com certeza o assunto dos remédios estará na pauta da sessão extraordinária da semana que vem. Tudo vai dar certo - esboçando um débil sorriso afastou-se o ignóbil.
         E, assim, morreu Gregório, que segundo testemunhas de copo, estava, naquele dia ligeiramente  alcoolizado.
        ...seis meses depois...
        Ao que sei caro leitor, é que a gorda recepcionista pesa hoje 54kg (P.S - não há pelancas), porém o pé soldou 45º a esquerda (P.S - ela teria tirado o gesso por conta própria).
       O jovem quase parricida fora inocentado e hoje é pai de seu irmão (P.S - lembram o caso?).
      Gregório em conclusão processual é arrolado pela morte do velho (P.S - aquele do caso com a nora), e como causador ativo do acidente fora decretada sua prisão, ao que sei o delegado a relaxara.
        Mas a pergunta que não quer calar é...e a mãe da criança? Bom...isto é assunto pra outra conversa!

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